O
ex-presidente Médici é pouco estudado, mas muito lembrado. Deixou raros
documentos e entrevistas, mas sua memória é cultuada por muitos. É lembrado por
ter presidido o “milagre brasileiro” (altas taxas de crescimento do PIB entre
1969 e 1973). Sua popularidade cresceu com a conquista da Copa do Mundo em 1970
pelo Brasil. Era aplaudido nos estádios de futebol. Nas margens do que resta da
Transamazônica ele ainda é bem visto. Sua foto ainda está em alguns sindicatos
de trabalhadores rurais por conta da criação do Prorural em 1971.
Sabemos,
entretanto, que Médici foi um militar rígido, implacável com a luta armada que
houve no Brasil no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Em uma rara
entrevista que deu, em 1982, disse que o combate à luta armada “foi uma guerra que aceitamos” e se
vangloriou: “Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não aceitássemos a
guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo”.[1]
Antes de ser presidente da República, ainda
durante o governo de Costa e Silva (1967-1969), Médici chefiou o Serviço
Nacional de Informações (SNI). Ele estava nesse cargo quando aconteceram as
famosas manifestações de 1968. No auge das passeatas, em junho de 1968, o presidente Costa e
Silva não queria recorrer a novo ato institucional (o AI-2, decretado em
outubro de 1965, deixara de vigorar no dia em que ele tomou posse), mas Médici
julgava necessário, “sem tardança, tomar medidas concretas de segurança, agindo
energicamente contra os elementos que ameaçam a integridade do governo”.[2]
Para conhecer Médici, podemos recorrer a
arquivos históricos no exterior, como os norte-americanos. Os documentos
sigilosos norte-americanos sobre outros países são liberados aos poucos. Alguns
são digitalizados e estão no site do arquivo nacional dos Estados Unidos.
Outros são divulgados na publicação The Foreign Relations of the United States (que não necessariamente coincide com o que está no site,
mas também está disponível na internet).
Para
consultar tudo, entretanto, é preciso ir ao arquivo em Washington de vez em
quando. Nunca sabemos quando algo novo é colocado nas caixas e, além disso, os
critérios utilizados pelos arquivistas norte-americanos para escolher os
arquivos a serem digitalizados ou publicados são erráticos. Enfim, a única
maneira de encontrar os melhores documentos é visitando o National Archives and Records Administration, em College Park (cidadezinha perto de Washington), e
ficar lá olhando, com paciência, caixa por caixa. Preparando minha próxima visita, encontrei
algo sobre o general Médici que ainda não tinha visto.
Em
20 de abril de 1967, o embaixador dos EUA, John Tuthill, visitou a Universidade
de Brasília para doar livros. Os estudantes o receberam com vaias. A polícia os
reprimiu com violência, prendeu vinte alunos e dois saíram feridos.
Tuthill
havia sido aconselhado a não comparecer, mas ele queria entregar os 4.000 livros em
inglês que estavam encalhados na embaixada desde 1962: teriam sido doados pelo
ex-presidente John Kennedy, em visita ao Brasil que foi cancelada, ainda
durante o governo Goulart.
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Embaixador Tuthill |
Toda a cerimônia na Biblioteca Central da universidade foi muito desagradável para o embaixador. Tuthill discursou em português, tentando ser gentil, mas dois estudantes abriram uma faixa na qual se lia “Ianques, fora do Vietnã”. Um militar recolheu a faixa e tentou retirá-los do recinto, mas os colegas o impediram. Terminado o discurso, algumas vaias. Falou em seguida o coordenador da Faculdade de Biblioteconomia, que ensaiou uma crítica ao comportamento dos estudantes, e levou estrondosa vaia do início ao fim de sua fala. O reitor Laerte Ramos de Carvalho também se saiu mal: discursou sob vaias e um aluno levantou um cartaz com os dizeres “go home”.[3]
Após
os discursos, foi servido um coquetel. Os estudantes fizeram piadas lembrando
da fome no Nordeste, entoaram paródias zombando do programa de ajuda norte-americano "Aliança para o Progresso" e,
afinal, cantaram o Hino Nacional que foi ouvido constrangidamente em silêncio.
O
reitor e demais professores levaram o embaixador para fora enquanto os
estudantes gritavam “abaixo a ditadura” e “abaixo a coca-cola”. Papéis e livros
foram atirados na direção de Tuthill, mas ele foi embora ileso.
Assim
que o embaixador deixou a Biblioteca Central, mais de cem homens da PM, além de
muitos policiais civis, encurralaram os estudantes dentro do prédio, prenderam
vinte e detiveram 57 que, algum tempo depois, foram liberados aos poucos, dois
a dois. Os vinte detidos foram levados no camburão. Dois estudantes feridos,
Álvaro e Regina, foram medicados no Hospital Distrital.
No
dia seguinte, o embaixador foi recebido pelo presidente Costa e Silva e pelo
chefe do SNI. Ele ficou chocado com o fato de que o presidente se preocupasse
mais com o “distinto embaixador” do que com os estudantes feridos.[4]
Médici
também conversou com Vernon Walters, adido militar dos Estados Unidos. Walters,
então, fez um relato dessa conversa para o embaixador que, de imediato, a
transmitiu para o Departamento de Estado.
O documento
(veja reprodução abaixo) informa que Médici planejava “organizar agências do SNI no
exterior” e que pediria ajuda aos EUA para isso. Walters disse a Médici que
isso custava muito dinheiro, mas o chefe do SNI disse que o orçamento oficial
era “mera cortina de fumaça” e que contava com recursos muito maiores vindos de
“desvios de outras dotações”. Nós já sabíamos que o SNI usava uma rubrica
chamada de “verbas secretas”,[5]
mas, neste documento, Médici está falando de corrupção.
O
general Emílio Garrastazu Médici se tornaria presidente em 1969. Durante seu
governo, ampliou muito a capacidade operacional do SNI, inclusive no exterior.
O general Golbery, primeiro chefe do SNI, afetando arrependimento, disse uma
vez: “criei um monstro”. Talvez, mas quem engordou a criatura foi Médici.
[3] “Polícia espanca estudantes na Universidade e prende os
manifestantes contra Tuthill”. Correio Braziliense.
21 abr. 1967. p. 1-2.
[4] Telegrama de Tuthill para o Departamento de Estado, de
21 de abril de 1967. National Archives and Records Administration. RG59, 1967-1969. Caixa 1909. Secreto
[5] Processo Confidencial
no 62704/74, jul./ago. 1974. Arquivo Nacional. Movimentos
Contestatórios à Ordem Política e Social/Processos. Cx. 3550-00020.